Correio dos Açores: Produzir e consumir de forma auto-suficiente nos Açores é possível?
Manuel Ledo (Presidente da Associação Terra Verde): Um dos objectivos da própria associação é este, tornarmo-nos auto-suficientes na região. E, não chegando à auto-suficiência, pelo menos o mais próximo possível. A minha perspectiva, com a experiência que tenho de associação, levame a acreditar que é possível sermos autosuficientes a nível de hortícolas. Dentro de cinco anos eu prevejo que sejamos capazes, mas para isto é necessário criar sinergias. (…) Essas sinergias são criadas com os decisores políticos, com os produtores e com a comercialização. Recentemente, lendo uma entrevista de uma associação do continente, apercebi-me de que é uma realidade que daquilo que o consumidor paga, chega ao produtor – que é o principal autor – entre 7% a 10%. Temos por isso que criar essas sinergias para sermos uma agricultura apelativa e sustentável com os decisores políticos porque, infelizmente, os nossos políticos não olham para a agricultura com os mesmos olhos com que olham para o sector da pecuária e, em especial, do leiteiro. Não estamos a dizer para tirarem esse olhar desse sector, mas temos o direito de sermos olhados com equidade e de não sermos olhados como o “parente pobre” de toda esta cadeia.
De que forma têm trabalhado para acrescentar valor ao sector?
Manuel Ledo: A Terra Verde já apresentou um caderno “reivindicativo”, que tem como objectivo trazer valor ao sector. Nós apresentámo-lo aos partidos que se reuniram connosco aquando das eleições (regionais), apresentámos o documento ao Secretário anterior que ainda estava em funções, e já o entregámos também ao actual. Lamentamos que, até agora, não tenha havido resposta. (…) Temos tido reuniões com o secretário, mas nas reuniões não basta ouvir, é preciso amadurecer as ideias e dar alguma resposta. (…) Em 2014 propusemos um plano formativo para criar técnicos conhecedores da área. É nas escolas que se começa, e pode ser tanto no ensino profissional como no regular. (…) Defendemos que os alunos, ao passarem do segundo ciclo para o terceiro ciclo, devam ter uma “caminhada agrícola” com disciplinas comuns e com uma ou outra específica. Mas o principal disto era a carga horária destinada à prática, porque ainda se pensa no agricultor como aquele que está com o sacho na mão – também tem que estar de sacho na mão, mas hoje em dia muito pouco.
Sílvia Bulhões (Vice-presidente da Associação Terra Verde): De forma transversal as preocupações, a nível mundial, assentam na questão: Como é que vamos alimentar o Planeta!? É certo que os Açores têm um papel muito reduzido na resolução desta questão mas se reduzirmos a questão à nossa escala, então muito há a fazer! Sabemos que a produção em quantidade não é a solução, não podemos pensar que vamos produzir o suficiente para o consumo local e para a exportação de todos os produtos. No entanto, podemos sim pensar na optimização da produção, na diversificação, no desenvolvimento de produtos ou subprodutos de valor acrescentado e essencialmente na diferenciação do produto que resulta das características edafoclimáticas dos Açores. O trabalho da Terra Verde vem no sentido de Dar Vida à Agricultura, defender os direitos e salvaguardar os interesses dos produtores, aproximar os produtores dos consumidores promovendo cadeias curtas, mas também garantindo a segurança alimentar aos consumidores através da implementação de referenciais de certificação ou validação como é o caso da Agricultura Biológica e Local gap. (…) Apesar da crise e da pandemia, da difícil situação que todos os produtores enfrentam neste momento, entendemos que esta é também uma oportunidade para promover a mudança num sector com potencial de crescimento. Na verdade, não conseguiremos substituir toda a importação, mas podemos reduzir consideravelmente com a vantagem de termos acesso a produtos frescos e colhidos no seu estado ótimo de colheita e ricos nutricionalmente. Outra oportunidade é, também, a diminuição ou a intenção de diminuir o efectivo leiteiro nos Açores. Uma das hipóteses poderá ser a produção em carne, mas não está fora de hipótese os produtores da agro-pecuária se dedicarem à horticultura ou à fruticultura. Bastaria que o sector hortofrutícola fosse mais atractivo.
De que precisa o sector para se tornar mais apelativo?
Sílvia Bulhões: Na minha opinião, as pessoas nos Açores, e os jovens em especial não reconhecem a agricultura como um sector apelativo porque todas as atenções estão voltadas para a agro-pecuária, e de alguma forma a hortofruticultura foi passando despercebida como o parente pobre. Reconhece-se a inovação e tecnologia na agro-pecuária e é frequente vermos jovens de tenra idade terem uma participação activa nas feiras e aspirarem vir a investir na área no futuro. O mesmo é mais difícil de acontecer na nossa área. Para além disso, há toda uma dinâmica à volta da agro-pecuária que não se verifica no sector agrícola, isto é na hortofrutofloricultura.
Manuel Ledo: O que nós precisamos, efectivamente, é de trilhar o caminho da valorização e promoção do sector, precisamos criar dinâmica e garantir uma agricultura mais competitiva, mais inovadora e capaz de dar respostas às tendências do mercado, precisamos organizar a produção, diversificar e criar valor acrescentado, garantir rendimentos a quem se dedica a alimentar a nossa população. Precisamos apostar na formação é certo, mas nada disso faz sentido se não garantirmos equidade nos apoios a atribuir, se não facilitarmos a aquisição de terrenos, o acesso ao crédito, por exemplo.
Que estratégias deveriam ser adoptadas para diminuir a dependência de produtos oriundos do exterior?
Sílvia Bulhões: Diminuir a dependência de produtos oriundos do exterior terá de passar por uma proximidade entre todos os intervenientes na cadeia agro-alimentar, e claramente pelo desenvolvimento de um estudo de mercado que resulte em dados reais sobre a oferta e a procura de produtos hortofrutícolas na região. Só com esta informação conseguimos definir uma estratégia de aumento e diversificação da produção local e consequente redução da importação. Obviamente, não conseguimos eliminar completamente a importação, mas conseguimos organizar o sector e dar orientações concretas aos nossos produtores, sobre o que produzir, quando, em que quantidades e idealmente para quem produzir. Continuamos a ver produtores a investir na produção sem acordos prévios na esperança de que a venda corra bem, mas o risco de não conseguir escoar é muito elevado e a rentabilidade do negócio é comprometida. Sabemos que há já alguns produtores que estão organizados, especialmente quem fornece as grandes superfícies e a agro-indústria, porque são estabelecidos acordos prévios, dando orientações sobre o que é necessário produzir e em que quantidades, mas a verdade é que precisamos alargar esta estratégia de planeamento a todos os produtores dos Açores para que possam acreditar que vale a pena investir no sector. Uma situação que acontece com frequência é a importação de determinados produtos coincidir com a existência de produção local, muitas vezes a um preço mais competitivo, e põe-se em causa o escoamento da produção regional. Neste sentido, defendemos uma posição de proteccionismo que garanta que a decisão pela importação aconteça quando esgotados todos os esforços a nível regional.
Manuel Ledo: De há oito anos para cá a Terra Verde tem vindo a debater-se com as entidades governativas sobre a necessidade de desenvolver-se um estudo de mercado que consiga servir de apoio ao planeamento das produções regionais e, ao mesmo tempo, contribuir para a diminuição das importações.
De que forma é que a guerra entre a Ucrânia e a Rússia veio acentuar os desafios dos produtores de hortícolas e frutícolas nos Açores?
Sílvia Bulhões: Embora considere que estamos perante um momento de oportunidade para a mudança no sector, não nos podemos esquecer que é também uma fase de grandes desafios e dificuldades para os produtores, que começa logo com o aumento dos custos de produção. Os produtores agrícolas, neste momento, estão a sentir o peso do aumento dos factores de produção, sem que, na maioria das vezes o preço final do produto reflicta esses aumentos nos custos de produção. Quando falamos em factores de produção, incluímos fertilizantes, fitofármacos, plásticos de cobertura, redes de proteção anti pássaros, etc… alguns dos quais sofreram aumentos na ordem dos 100%. (…) Esta situação já começou com a pandemia, mas a verdade é que com a guerra entre a Ucrânia e a Rússia, a situação tornou-se bastante mais preocupante. Para além dos custos de produção, que por si só, diminuem ainda mais as margens de lucro do produtor, precisamos entender que outros problemas relacionados com pragas, como coelhos e pássaros, também resultam em prejuízos avultados para os produtores, sem que até ao momento haja solução para eles. Importa referir que em alguns casos, a combinação das duas pragas dizimam culturas inteiras.
E, actualmente, há na Região terra suficiente para aumentar a produção de hortícolas e frutícolas?
Manuel Ledo: Terra temos!
Sílvia Bulhões: Se, por um lado, temos capacidade para crescer em área e em quantidade através da optimização da produção, por outro estamos limitados pela falta de mão-de-obra, pela falta de equipamentos adaptados à escala das nossas parcelas que permitam a mecanização e pela falta de know-how. Assim, é importante perceber que não basta ter terra disponível para aumentar a produção, é preciso saber como fazê-lo de forma sustentável. A inovação, a tecnologia, a sustentabilidade são palavras de ordem nos dias de hoje, mas para dar o salto precisamos que técnicos, agricultores, operacionais tenham acesso ao conhecimento e sejam capazes de acompanhar a constante evolução e as tendências dos mercados. Reunidas todas estas ferramentas e associando a uma forte intenção para diminuir a produção de leite nos Açores, poderemos sim ter terra suficiente para aumentar a capacidade produtiva contribuir para a redução da importação. Além disso, a falta de organização e a falta de dados estatísticos sobre o que faz sentido produzir na região, faz com que alguns produtores continuem a produzir sem acordos de produção e garantia de escoamento, o que resulta em excedente de determinadas culturas em alturas em que faria sentido produzir outras. Por exemplo, neste momento estamos a ter excedente de alface, e escassez de pepino e tomate, uma situação que é recorrente, mas que nada foi feito para inverter a situação (…).
Manuel Ledo: Garantidamente, o Governo Regional dos Açores teve uma quota parte de responsabilidade nesta situação na medida em que ao longo dos anos não dedicou a devida atenção ao sector agrícola, talvez porque assumiu que de uma forma ou de outra os produtores foram resolvendo as suas dores. No entanto, temos esperanças que o actual Secretário Regional da Agricultura consiga inverter a situação e que utilize as ferramentas que tem em seu poder para que o sector possa efectivamente atingir o seu potencial máximo.
O que necessita o sector para captar mais mão-de-obra?
Sílvia Bulhões: Desde logo precisamos valorizar e dignificar o sector, falar de Agricultura como o sector com potencial de crescimento, que proporciona oportunidades de emprego para jovens nas mais diversas áreas, que é um sector fundamental na economia da região, mas da mesma forma precisamos garantir que é uma actividade onde vale a pena investir, que é rentável e lucrativa e que os produtores e as suas famílias consigam ter estabilidade financeira. A evolução e o crescimento do sector dependem em grande parte da entrada de novos agricultores, mas também de agricultores que, estando no activo, sejam capazes de promover a mudança e de acompanhar as tendências de produção e do consumo. No momento actual, é transversal a desmotivação, os produtores vêem os custos de produção aumentar sem que consigam traduzir este aumento de custos no preço final do produto. As margens e a capacidade de investimento são cada vez mais reduzidas. Assim, e perante este cenário é difícil cativar novos investidores no imediato. No meu entender é preciso repensar toda a estratégia de apoios e incentivos ao sector e penso que os planos estratégicos quer da horticultura, quer da fruticultura, entre outros já em execução, são ferramentas fundamentais para tornar o setor mais apelativo. Não podemos esquecer que os planos estratégicos são o resultado dos contributos das mais diversas entidades, empresas e inclusive produtores da região. As expectativas são muitas, os desafios também, mas a resiliência é o que define o setor agrícola e, portanto, acredito que no curto/médio prazo estaremos perante uma dinâmica muito interessante no sector.
Manuel Ledo: Em relação aos salários, com os custos de produção elevados e as margens de lucro reduzidas é difícil para o produtor suportar os encargos sociais resultantes da contração de recursos, sendo em alguns casos insustentável, daí que seja de extrema importância conseguir junto do Governo da República a isenção temporária de contribuições para a Segurança Social no sector agrícola, conforme projeto de resolução apresentado e aprovado esta semana na Assembleia Legislativa dos Açores.
E em termos de formação, o que falta então?
Manuel Ledo: Apesar de dizerem que sim, que vamos caminhar no sentido de se criar formação, por exemplo, na realidade esta não existe. E nós, associação, não temos forma de criar riqueza para fazermos a nossa formação também. Fazemos alguns cursos de formação mas são para os nossos produtores, como workshops ou sessões de várias horas.
Sílvia Bulhões: O nosso objectivo é contribuir para a capacitação de todas as pessoas que de alguma forma tenham um papel activo na agricultura, temos bons técnicos, temos bons produtores, mas se queremos evoluir temos que acompanhar as tendências nacionais e europeias, e para isso precisamos ir à procura de know-how e aplicá-lo à realidade da região (…), mas seria fundamental a existência de uma Escola Agrária na região com uma forte componente prática e alinhada com as tendências de um sector em constante evolução.
Qual a importância da agricultura biológica neste aspecto?
Sílvia Bulhões: Durante algum tempo as pessoas acharam que a Terra Verde era contra a agricultura biológica, mas nunca foi o caso e continua a não ser, até porque apoiamos vários produtores biológicos e recomendamos práticas culturais e soluções biológicas na resolução de problemas na agricultura dita “convencional”. A questão sempre foi: como é que nós, apesar de sermos pequenos, conseguimos fazer agricultura biológica num produtor que tem 50 hectares de batata, por exemplo, e que não tem possibilidade de fazer rotação de culturas, que é um dos requisitos da agricultura biológica? Até há pouco tempo nem sequer havia na região fatores de produção autorizados para a agricultura biológica. Toda esta dinâmica de se produzir o próprio adubo, por exemplo, não é compatível com uma agricultura de grande escala. Os próprios especialistas da região em Agricultura Biológica, quando questionados em relação a isto, assumiam que é um desafio produzir agricultura biológica em “grande escala”. Portanto, há toda uma aprendizagem a fazer para que no futuro mais produtores possam enveredar por este método de produção. Na Terra Verde, defendemos que é fundamental garantir que os nossos produtores adoptam métodos de produção sustentáveis, com recurso a soluções orgânicas, que optem por métodos de controlo de pragas e doenças alternativos, que consigam trabalhar de forma preventiva em vez de curativa, e tudo isto faz com que o consumidor tenha ao seu dispor produtos mais seguros e de qualidade garantida.
Em relação às alterações climáticas, que desafios representam para a produção local?
Sílvia Bulhões: Enquanto em Portugal continental se vivem situações de seca extrema e de falta de água, nos Açores damo-nos ao luxo de desperdiçar a água da chuva e das ribeiras sem que haja uma estratégia para o futuro, pelo menos que tenhamos conhecimento, para captar esta água e disponibilizar aos agricultores. (…) O governo tem vindo a apoiar, a construção de reservatórios para captação de água das chuvas, mas não podemos esquecer que alguns dos produtores não têm terreno próprio, e como tal não têm possibilidade de construir reservatórios num terreno que não é seu. Então, atendendo a que os recursos naturais são finitos e não é excepção para os Açores, é fundamental delinear uma estratégia de conservação dos mesmos, neste caso, dos recursos hídricos, que resulte na construção de bacias para captação de água para posterior utilização pelos produtores agrícolas.
Joana Medeiros